Os sambas prediletos para 2010:
por Luis Carlos Magalhães
O samba da Beija-Flor
Um samba de arrepiar!
Caudaloso como a escola, denso. Com o capricho de não ter nenhuma frase, nota ou palavra posta a martelete. Na crise de melodias vigente, soa como uma benção harmoniosamente equilibrada pelas palavras fortes que o tema requer. Como as águas do rio que a escola canta:
É Paranoá...
Paranoá.
E flui:
Pássaro sagrado
Voa no infinito azul
Abre as asas bordando o cerrado
De norte a sul
Num primoroso refrão que alia força, poesia e beleza melódica, conduzirá sua gente na pista ao grande momento, de grande vigor e emoção do carnaval:
Ah! Terra tão rica é o sertão
Rasga o coração da mata, desbravador
Finca a bandeira neste chão
Pra desabrochar a linda flor.
Para quem, como eu, amarrou a cara esperando um enredo árido e "chapa branca" o samba surpreende deixando fora do carnaval a parte institucional enfocando toda sua secular energia formadora. Como se quisesse fugir, como se fosse possível ocultar toda a vergonha , tanta mentira, tanta covardia que em Brasília se faz contra o povo brasileiro.
Homenageia JK laconicamente em um único verso, mas com grande força. Da mesma forma a bela homenagem a Niemeyer, habilíssima em verso único. E faz isto no momento em que o samba vai quase terminando... E segue tal como numa partida de vôlei decisiva na Sapucaí - o match point; Faz a levantada perfeita e harmoniosa da melodia para que a galera na pista possa dar a cortada final... emocionantemente final:
Sou candango, calango e Beija-Flor!
Traçando o destino ainda criança
A luz da alvorada anuncia!
Brasília capital da esperança.
Um samba de arrepiar!
O samba da União da Ilha
Nada me surpreendeu mais nesta ninhada de carnaval. De tão simples o samba, de tão bonita a melodia, exigiu de mim um sem número de audições pra confirmar minhas primeiras impressões. Como pode o mais importante, o mais lido romance da humanidade, livro só menos vendido que a Bíblia ser transformado em um samba tão simples.
Sabiamente a escola ou seus compositores, ou estes por ela orientados, optou por tangenciar tema de tamanhas dimensões, que tão fundo toca a alma humana. Concorreu para isto a competentíssima sinopse oferecida, sem qualquer gordura.
No samba os personagens decisivos são pinçados em no máximo seis: o fidalgo, o seu cavalo e seu escudeiro. Sua amada, o(s) moinho(s) e afinal seu desafiante que o fez (re) cair na real.
Dos dois sambas embaralhados, um deles era "pessoalizado", na primeira pessoa do singular; trazia a narrativa para si, um depoimento, um testemunho. O outro era narrativo, na terceira do singular.
A opção do tratamento reflexivo tirou (intencionalmente?) do samba a responsabilidade e o pesado fardo da descrição. Na forma pessoal passou a falar do Quixote como quem fala de si mesmo. A outra parte do outro samba foi transformada da terceira para a primeira pessoa tornando tudo uniforme a as coisas mais fáceis.
Fico imaginando se tudo se deu mais ou menos no "tapa" ou se tudo foi resultado de muita reflexão. O samba é um samba simples? É ! Mas está perfeitamente adequado e pronto para servir de trilha para a riquíssima narrativa que se espera da escola e que o tema tanto possibilita.
Mais do que isto, e aí a razão maior de meu entusiasmo e da nota que dei: a melodia do samba. Sim, a melodia. Esta parte do samba-enredo há tanto em crise e que este ano me tem renovado a esperança.
Temos aqui, mais uma vez este ano, é sempre bom repetir, um belo exemplar da harmonia da letra do samba e sua melodia. Arrisco dizer que a segunda parte terá um marcante desempenho na pista, de tão insinuante, de tanto que me faz ouvi-la tantas e tantas vezes.
Se coube ao primeiro refrão a carnavalização da batalha dos moinhos, coube à segunda parte do samba captar e conduzir o espírito e o encantamento do personagem em busca "(...) dos ideais dos quais a razão desistiu". A busca enfim de tudo aquilo que nós os "normais" julgamos utópico, lunático e ridículo. No último refrão a Ilha fala dela. E acaba falando um pouco de cada um de nós, mesmo que tanta gente não saiba , finja não saber ou não consiga saber disto:
Quem é que não tem,
Uma louca ilusão
E um Quixote no seu coração
No mais, só lamentar que Aroldo Melodia não esteja aqui para ouvir seu filho querido cantando tão bonito.
O samba da Imperatriz
O mais difícil não foi escolher este samba como o preferido do ano, dificil foi não escolher o da Beija-Flor e o da Vila juntos. Mas como tem que ser um só, preferi este só por que me emocionou mais, ainda que só um tiquinho em relação aos dois outros.
Ouvi dizer até que era um tema batido, já mostrado pelo Império Serrano, entre outros do passado. Na verdade o samba não trata da liberdade religiosa "interna", aquela que é patrimônio de todo brasileiro: escolher seus deuses e suas proteções em momentos dúvida, incertezas e aflição. É muito mais que isto.
O samba festeja, louva, a religião como um direito universal do homem; de todos os homens. De qualquer homem, não só do homem brasileiro, como os sambas anteriores, dos outros carnavais. Quantos terão sido? De onde terão vindo? Quanta gente, de quantos povos, de quais perseguições terão fugido esses "navegantes imigrantes"?
E para aqui vieram e encontraram terra fértil para semear os "traços de suas tradições e os laços das (suas) religiões". Sim, aqui nesta "terra abençoada", vá lá... "morada divinal". E é em um pedacinho dela, em Ramos, sob o brilho da "coroa sagrada" que esta evocação é feita.
O primeiro refrão é um primor da síntese de como este secular acolhimento se deu aqui entre nós, base de todas as portas abertas para todos os credos:
O índio dançou, em adoração
O branco rezou na cruz do cristão
O negro louvou os seus orixás
A luz de Deus é a chama da paz.
E aí o povo da Imperatriz canta e reza - mas pode rezar na Sapucaí? - como se fossem filhos, netos desses imigrantes, ou sendo eles mesmos, suplicando para que pudessem encontrar melhores dias, acolhimento, enfim, em algum lugar do mundo:
Oh! Deus Pai!
Iluminai o novo dia
Guiai ao divino destino
Seus peregrinos em harmonia.
Para quem, como eu, vê no samba-enredo a maior atração do carnaval, que andava tão desanimado com sambas tão previsíveis, esta é a confirmação de que a Imperatriz está fazendo sua parte, repetindo um samba de tanta qualidade, inventiva poética e melódica quanto aquele das Marias e dos Joões.
Em equilíbrio, em harmonia perfeita de letra e música, com a força que só um grande samba pode dar, tenho a "mais inquebrantável fé" que vou assistir lá na Sapucaí, "no altar do samba", um desfile emocionante fazendo com que cada um de nós seja mais um naquele
(...) mar de fiéis
No altar do samba, em oração
É o Brasil de todos os Deuses
De paz, amor e união.
O samba da Vila Isabel
Pra quem tem memória curta é sempre bom lembrar que há um ano estávamos aqui escolhendo "Lenda das Sereias", um samba da década de 70 do século passado, como o melhor do carnaval. Lembram?
Se bem me lembro essa escolha foi unânime, ou quase isto, nas diversas pesquisas da época.
Digo isto para saudar este ano como sendo de grandes alegrias. Quase a metade dos sambas apresentados poderia estar em qualquer safra do passado já distante representando muito bem o carnaval dos nossos tempos. Este aqui é o samba do Noel, o samba do Martinho que trouxe de volta o já tradicional debate sobre o "andamento" e a qualidade dos sambas-enredo.. Na verdade ninguém no mundo do samba tinha dúvida de que seria este o samba escolhido.
Com essa certeza vinha também a esperança para aqueles que acreditam, como eu, que o samba-enredo é a grande força do carnaval das escolas de samba. E aqui digo sem nenhum pudor que se dependesse de mim o samba-enredo teria peso 2. Digo e repito: se dependesse de mim o quesito samba-enredo teria peso 2.
Mas voltando ao nosso papo. Qual era a esperança? A esperança é que Martinho fizesse a coisa do seu jeito e que esse samba que levasse a Vila à vitória. Um samba que aliasse poesia, fantasia e melodia, har-mo-ni-o-sa-men-te.
Quebraria assim o paradigma do samba marcheado e, sobretudo, do samba operacional cuja única função é, mal ou bem, servir de veículo para a "letra" que apresenta o enredo.
E mais, e não sei se a escola, ou ele próprio, impôs ao enredo o difícil desafio de "trazer Noel para o desfile". Não bastaria contar e mostrar pedaços da vida dele. Ou fazer referência à suas músicas. Mais que isto, o desafio é trazer " a presença" de Noel para a Sapucaí.
E foi assim que em minha crônica de 08 de agosto último, antes mesmo da primeira apresentação dos sambas em quadra, sob o título "O SAMBA DO MARTINHO", escrevi já na primeira linha: "(...) estava lá junto com outros oito sambas concorrentes; a vedete do carnaval; o esperado; a benção".
Confesso aqui que escrevi isto muito mais em cima da citada expectativa do que do samba propriamente que eu mal acabara de ouvir minutos antes de ir para a quadra. Hoje sabemos que o samba é um sucesso, tanto na quadra quanto na gravação e também na pista. Foi beber numa antiga parceria a "poção mágica" que já no passado fizera Noel descer "do céu", passear e se fazer "presente" pelas ruas de Vila Isabel.
Deu certo! Dará certo? O importante é que pelo andar da carruagem Noel "baixará" na avenida. Se depender do samba isto acontecerá. Se depender da escola, também.
Portela à parte, estou torcendo pela Vila. E faço isto pela Vila, pelo Martinho, sobre tudo por Noel Rosa. E faço também por mim, pelo que o bairro representa em minha vida e de minha família.
E pelo que o carnaval representa para mim. Quando muitos de nós reclamamos dos sambas "modernos" não é a questão do andamento em si. É isto também, mas é mais. Na verdade é muito mais. Não é pelo fato de o samba ser "moderno", e de os tempos terem mudado, que tem que ser "marretado", "corridinho", óbvio e pobre melodicamente.
Na minha cabeça, e na de muitos de vocês, o samba enredo tem que ter poesia e melodia. Será que é pedir muito? Não precisa ser antológico e nem inesquecível. Por mais que a gente sempre espere por ele, por mais que a gente vibre quando ele aparece, como apareceram agora este e alguns outros deste carnaval.
Quero me emocionar na avenida, quero que a Vila venha lindíssima com um samba-enredo de verdade, uma samba que traga poesia e melodia.
E fantasia, também.
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