sexta-feira, 9 de janeiro de 2009



A origem do samba em São Paulo é um fato que divide opiniões. Entre os que entendem do assunto, não há consenso. Por exemplo: o sambista Geraldo Filme teria afirmado que os sambas de roda realizados pelos negros em Pirapora do Bom Jesus, em 1808, seriam a semente do gênero por aqui – ao menos é disso que se orgulha a cidade no site oficial. Já o pesquisador musical Tadeu Augusto Matheus, conhecido no mundo do samba como T-Kaçula, do Projeto Cultural Samba Autêntico, também músico e compositor, diz que há registros de batucadas anteriores. “Festas feitas em Piracicaba e Capivari, nas senzalas, pelos negros que trabalhavam nas plantações de café em 1722”, garante. Tendo origem no século 16 ou 17, uma coisa é certa: samba é assunto de paulista há muito tempo. E não é que mesmo assim vem Vinicius de Moraes e chama São Paulo de túmulo do samba? No entanto, a frase – sem dúvida, de efeito –, não deve ser levada tão a ferro e fogo, afinal não se pode esquecer que seu constante parceiro, Toquinho, é paulistano do Bom Retiro, o que prova que o dito não passava de mais uma troça do poetinha (quem não se lembra de “as feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”?). Além disso, não dá para dizer que uma cidade que deu ao samba nomes como Adoniran Barbosa, o já citado Geraldo Filme e ainda Paulo Vanzolini, Germano Mathias, Caco Velho, Jorge Costa, Hélio Sindô e Henricão – os três últimos, respectivamente, alagoano, gaúcho e cearense, mas radicados em São Paulo – seja cenário para a morte do batuque. O que ocorreu, isso sim, foi um descompasso na difusão das produções de Rio de Janeiro e São Paulo, o que levou a uma influência do primeiro sobre o segundo. Durante muito tempo, o samba paulistano ficou restrito a focos isolados, sobretudo aos cordões carnavalescos, enquanto no Rio o cenário era outro: a então capital do Brasil tinha na Rádio Nacional um forte instrumento para fazer ecoar por todo o país as vozes de Linda Batista, Donga (que teria gravado o primeiro samba da história, Pelo Telefone, em 1917), Orlando Silva e Carmen Miranda, entre outros. “O samba do Rio de Janeiro impregnou o Brasil inteiro”, conta Eduardo Gudin, referência do samba em São Paulo e diretor musical dos espetáculos que compuseram o evento Na Cadência Paulista do Samba, realizado no Sesc Vila Mariana no mês passado (Leia mais: Batuque Urbano). “A idéia de samba de Noel Rosa, Ismael Silva, Ari Barroso e Dalva de Oliveira – que tocavam no rádio – acabou se espalhando.” No entanto, Gudin ressalta que não há igualmente como negar os ótimos compositores paulistas que têm lugar marcado na história nacional do samba. “Tem Vadico, que compôs muitas músicas com Noel; Garoto, um marco da música brasileira moderna; Adoniran, que fez um samba impossível de fazer em outro lugar; e Germano Mathias, que faz um samba de malandro paulista e é um dos artistas mais bem resolvidos deste país.”

Esse passado sólido do samba de Sampa garantiu um presente profícuo. É só rodar pelos bares de bairros como a Vila Madalena, na Zona Oeste, e do Bixiga, na Região Central, para notar como o samba tem sido a trilha sonora de muitos boêmios até hoje – isso sem contar, é claro, com os movimentos de periferia, que, por sua vez, garantem a produção atual do gênero.

O início
Esse novo momento vivido pelo samba de São Paulo teve um marco em 1996, com a criação do projeto Mutirão do Samba, num botequim na Alameda Barão de Limeira, no Centro. Com base nele, por exemplo, foi criado o Samba da Vela (veja boxe Comunidades do Samba). “O Mutirão, na realidade, era uma reunião de amigos”, diz José Alfredo Gonçalves Miranda, o Paqüera, um dos fundadores tanto do Mutirão quanto do Samba da Vela. “Em 1982, entrei para a escola de samba Vai-Vai e lá consegui fazer alguns amigos que eram do mundo do samba. Um deles foi uma pessoa que era da [escola de samba] Nenê de Vila Matilde, o Douglas Germano, que morava no Centro, na Barão de Limeira, perto da Folha [isto é, perto do prédio do jornal Folha de S.Paulo]. Ali havia um boteco. A gente começou a se encontrar lá para tomar uma cervejinha e fizemos uma roda de samba maravilhosa. Era o auge do pagode comercial e a gente ficava cantando aqueles clássicos.” Os encontros, no entanto, não se limitavam a execuções saudosistas de sambas antigos. Os amigos ali reunidos, segundo Paqüera, refletiam sobre o samba, discutiam sua temática, avaliavam a ligação com o carnaval, e as diferenças entre a produção paulista e a carioca. “Foi aí que surgiu essa idéia do Mutirão do Samba, que começou em 1996 e terminou em 2000”, conta o sambista. “As pessoas que fizeram parte daquele núcleo começaram a entender a linguagem do samba”, afirma Magno Souza, integrante tanto do Samba da Vela quanto do Quinteto em Branco e Preto, um dos mais conhecidos grupos de samba de São Paulo hoje.

Onde está o samba
“Nunca se produziu tanto quanto hoje em São Paulo”, afirma Douglas Germano, que ajudou a formar o Mutirão do Samba e que compôs, junto com outros três parceiros, o Grupo Madrugada, reunido exclusivamente para o evento do Sesc. “A produção agora está fervendo, todo lugar a que você vai tem samba, as pessoas falam de samba. A minha música foi finalista do festival [Festival da Cultura 2005, promovido pela TV Cultura] e era um samba.” Para o jornalista e crítico musical Tárik de Souza, o samba paulista atualmente tem se beneficiado da saturação do chamado pagode comercial. “Sem dúvida, o que impulsiona também esse novo interesse é o aparecimento de eventos como o Samba da Vela, fenômeno típico da periferia paulista e que já gerou um disco, difundindo o trabalho de seus criadores”, explica. O jornalista credita também o novo fôlego do samba de São Paulo à consolidação de grupos como o Quinteto em Branco e Preto – “com repertório e estilo próprios”, diz – e à constante atividade de autores como Luizinho SP, “que leva a localidade no nome”.

Um dos endereços onde se pode conferir a atual boa forma do samba paulista está cravado bem no Centro da cidade, mais precisamente na Rua General Osório, que todo último sábado de cada mês muda de nome e vira a Rua do Samba Paulista – é a roda de samba, integrante do Projeto Cultural Samba Autêntico, que existe desde 2002 e chega a reunir mais de mil pessoas. “O evento destina-se ao resgate, promoção, divulgação e preservação do samba feito em São Paulo”, conta T-Kaçula, uma das cabeças à frente do projeto. “Ao longo de sua existência, amantes, pesquisadores, estudantes, apreciadores, sambistas e público em geral tiveram a oportunidade de se encontrar com músicos e compositores, com a velha e nova guarda do samba de São Paulo.”

Já na Zona Leste de São Paulo é o pessoal do Grêmio Recreativo de Tradição e Pesquisa Morro das Pedras, localizado entre as Ruas Morro das Pedras e Rodolfo Pirani, no bairro de São Mateus, o responsável pelas animadas rodas que atraem gente de toda a cidade. Lá, a exemplo dos outros projetos, o lema é samba no pé e a consciência da importância do gênero musical e do sentimento de coletividade. Tanto é assim que um dos muros da agremiação ostenta a ordem: Amor e Respeito à Velha Guarda.

Seus integrantes, ao dar entrevista, preferem não ser identificados, para “ressaltar o caráter coletivo da agremiação e impedir que a vaidade penetre nesse novo espaço”, segundo explicou o jornalista Thiago Mendonça, em reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo em junho de 2001, dois meses depois da inauguração do movimento. Um dos porta-vozes do Morro das Pedras explicou ao repórter na época que a formação da agremiação tinha a ver com a decadência das escolas de samba, que “deixaram de valorizar seus músicos para prestigiar pessoas da elite, que não tinham nenhuma ligação com essa cultura e com sua população marginalizada”. Mesmo com a forte valorização do engajamento, que pode ser vista por alguns como radicalismo, todos são bem-vindos às rodas, que, além do samba, contam com outro combustível potente: o caldo de mocotó do “Tim Maia”, famoso dono de bar da região.

Reflorescimento
Entre os grupos que portam o estandarte do samba paulista, fazendo interessante intercâmbio entre os mestres do passado e os novos nomes, está o Inimigos do Batente – cujo nome é uma referência ao samba Inimigo do Batente, de Wilson Batista –, formado por Fernando Szegeri e Railídia Carvalho (voz), Edu Batata (cavaquinho), Geraldo Maracanã (violão), André “Sossega Leão” (pandeiro), Cebolinha (tantã), Kaká Sorriso (repique), Julio Velozzo (cuíca e agogô) e Paulinho Timor (percussão geral). O grupo se reúne semanalmente no bar Ó do Borogodó, na Vila Madalena, em Pinheiros, e atrai interessados no gênero. “São Paulo teve um reflorescimento, um renascimento do samba tradicional de alguns anos para cá, muito traduzido pela força desses projetos pela periferia da cidade, que foram retomando essa tradição das rodas de samba”, analisa Fernando Szegeri. “Nós, do Inimigos do Batente, por exemplo, aproveitamos esse renascimento da roda de samba para levar para os bares, para a noite paulista, esse lado descontraído, da empolgação, buscando sempre participação do público, resgatando também muitos dos instrumentos que já não são mais tão usados atualmente, como a frigideira, a faca e o garfo, os atabaques, a caixa de fósforo, o chocalho de lata de cerveja, essas coisas que fazem parte da roda de samba de fundo de quintal mesmo.”

Também com o intuito de resgatar o chamado samba de raiz, apresentando canções inéditas de grandes sambistas, além de interpretar canções já conhecidas, o grupo Parangolé – formado por Edu Batata (cavaco), Miró (percussão), Paula Sanches (vocal), Paulinho Timor (percussão) e Rodrigo Campos (violão) – teve mestres como os integrantes da Velha Guarda da Camisa Verde e Branco, e Osvaldinho da Cuíca. Sem, por isso, deixar de mostrar composições próprias. “O que se nota é que existe uma geração que vem resgatando as rodas sambas de Geraldo Filme, Adoniran, Germano Mathias e outros bambas da antiga, despertando assim um interesse maior pela história e trajetória do samba paulista”, observa Paula Sanches. “Hoje as pessoas procuram e notam, dão valor ao samba.”

Outro deles, mais conhecido do grande público, é o Quinteto em Branco e Preto, do qual fazem parte Everson Pessoa (violão e voz), Maurílio de Oliveira (cavaquinho e voz),Victor Pessoa (surdo e voz), Magno Souza (pandeiro e voz), Yvison Pessoa (percussão e voz). Formado em 1997 na Zona Sul de São Paulo, o objetivo era clássico: preservar o samba tradicional. Em 2000, o quinteto fez a primeira viagem internacional, dois shows realizados na África do Sul, acompanhado pela sambista carioca Beth Carvalho, madrinha do grupo. No mesmo ano saiu o primeiro CD, Riqueza do Brasil, com participação da própria Beth e mais Almir Guineto, Wilson das Neves, Mauro Diniz e Oswaldinho da Cuíca. Em agosto de 2003 saiu o segundo, Sentimento Popular. Hoje, os integrantes fazem parte também da Comunidade Samba da Vela. “Ficou uma lacuna aberta durante muito tempo no samba de São Paulo, desde a época de Adoniran”, afirma Magno Souza. “Uma lacuna que, a meu ver, o pagode, mais comercial, acabou ocupando. Mas hoje, muito em resposta a isso, o que estamos vendo é essa nova geração preocupada com a preservação, com o samba como cultura de um povo. O que fez com que muita gente voltasse à pesquisa novamente.”