Dizem que todo baiano acha que sabe tocar percussão. Isso porque quando a música começa a tomar conta de um ambiente, já é possível perceber os dedos tamborilando na mesa, logo transformados em batidas menos discretas. Fora aqueles que se arriscam no batuque com qualquer objeto que produza som, e os mais ousados, que não podem ver um tamborim dando sopa. É claro que num contexto de diversão, vale tudo. E é mais claro ainda que os percussionistas de verdade são a minoria. Mas uma coisa não se pode negar: a Bahia é percussiva por natureza. E isso salta aos olhos – e aos ouvidos.
Um evento que reúne o melhor da percussão nacional e internacional não poderia, portanto, ter nascido em outro lugar. E foi a partir do interesse da antropóloga baiana Beth Cayres por esse segmento da música que se criou o Perc Pan – Panorama Percussivo Mundial. A primeira edição aconteceu em março de 1994 e desde então o Panorama já passou por São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e até Paris, mas sempre mantendo raízes firmes na Bahia. “O Perc Pan é tudo aquilo que a Bahia representa”, declarou Beth. A psicóloga Úrsula Campos, que esteve presente em várias edições do evento, reitera: “Acho que percussão e Bahia têm tudo a ver. Somos africanos em primeira instância”.
“Acho que percussão e Bahia têm tudo a ver.
Somos africanos em primeira instância”.
Úrsula Campos
Nos últimos dias 18 e 19, Salvador teve seu batuque natural reforçado pela 15ª edição do Perc Pan, que ofereceu workshops de percussão gratuitos durante o dia e apresentações a preços populares no Teatro Castro Alves durante a noite. Ao longo de sua história, o Panorama se firmou como o maior festival de percussão do mundo e se tornou referência pela iniciativa de reunir linguagens percussivas de diferentes países, promovendo um intercâmbio de culturas através da música. Marcelo Silva, funcionário público e amante dos sons, reconhece que “a grande importância do Perc Pan é o encontro dos tambores, a partilha de conhecimento”. Em 2008 não foi diferente: pandeiros, tambores, congas, caixas de fósforo e mãos especialmente ágeis tomaram conta do palco do TCA, que ficou lotado nos dois dias do evento. Além de talentosos músicos brasileiros, como Wagner Tiso e Orlando Costa, o Perc Pan trouxe grupos de países diversos: Amazonnes (Guiné), Faltriqueira (Espanha), Sintesis (Cuba) e Stomp (Estado Unidos).
No dia 18 de setembro, quinta-feira, o Teatro Castro Alves abriu as portas para a informalidade do público do Panorama, predominantemente jovem. No entanto, a pluralidade do Perc Pan se estende aos seus espectadores: havia também famílias com crianças e pessoas mais velhas, como a aposentada Celeste Vostal, de 73 anos, que enfatiza: “Não existe idade pra gostar de um evento como esse. Temos que dar valor à percussão.” Às 20 horas, quando as apresentações deveriam ter início, as palmas ansiosas da platéia tomaram conta do teatro. Mas o espetáculo não tardaria a começar. Com pouco mais de cinco minutos de atraso, a percussão de Marcos Suzano e o teclado de Alex Meirelles abriram de forma suave o Perc Pan. A dupla, que já tocou separadamente com grandes nomes da música brasileira, tem um trabalho consistente em parceria, com quatro discos gravados. O carioca Marcos Suzano lançou mão de diversos elementos percussivos, com destaque para o pandeiro, enquanto o também carioca Alex Meirelles transitou pela música eletrônica e mostrou seus experimentos, realizados a partir da utilização de sons de rádio e televisão. Os dois fizeram várias apresentações curtas ao longo do Panorama, preenchendo de sonoridade os intervalos entre um grupo e outro. Na abertura, Suzano, que também é diretor artístico do evento, destacou a presença feminina no Perc Pan 2008: “As mulheres estão tocando demais!” Logo o público comprovaria a veracidade de suas palavras, com as africanas do Amazonnes e as espanholas do Faltriqueira.
Mas antes disso, percussão e sopro se encontraram no show do grupo baiano Orkestra Rumpilezz. Sob o comando do maestro, compositor, arranjador e saxofonista Letieres Leite, a Rumpilezz trouxe para o palco do TCA a mistura que lhe deu reconhecimento: ritmos da terra (candomblé, sambas do recôncavo) aliados às influências jazzísticas. Além da qualidade sonora, o visual do grupo também chama a atenção. Os percussionistas tocam de terno e os sopros usam bermuda e camiseta – todos de branco. A Rumpilezz satisfez as expectativas do público, que pediu (em vão) bis no fim do show. Rigorosa com o horário, a organização do evento se apressou em trocar o cenário, causando certo mal estar para os músicos da Orkestra e também para os espectadores. No intervalo, Marcos Suzano se desculpou em nome dos organizadores e deu continuidade às apresentações com o grupo Amazonnes, da Guiné.
Composto exclusivamente por mulheres, o Amazonnes é a energia africana em sua potência máxima. Para além da vigorosa batida percussiva, o grupo canta a tradição cultural de seu país e dança com força e agilidade impressionantes. As artistas do Amazonnes mostraram ritmo e alegria do início ao fim do show. A batida contagiante era quase uma provocação aos espectadores, presos às cadeiras. Elas pareciam se sentir em casa e esbanjaram simpatia nas brincadeiras e interações com a platéia – incluindo soltar beijinhos e pedir palmas, no que eram prontamente atendidas. A apresentação do Amazonnes arrebatou o público, provando que os batuques africanos falam mesmo a nossa língua.
Quem encerrou a primeira noite do Perc Pan foi o aguardado grupo Stomp, reconhecido mundialmente por explorar os ritmos da vida cotidiana. Criado na Inglaterra em 1991, o Stomp tem hoje mais de dez companhias espalhadas pelo mundo e a que se apresentou em Salvador era composta pelo elenco norte-americano. O início do show é aparentemente despretensioso: um homem entra varrendo o chão como se estivesse em casa. Em seguida, entram os outros sete integrantes com suas vassouras e fazem o ato banal virar arte. O Stomp faz malabarismo com os pés e as mãos e cria verdadeiras sinfonias com simples palmas e pisadas, caixas de fósforo, canos, sacos plásticos e latões de alumínio. “Eu queria fazer metade do que os caras do Stomp fazem. Foi sensacional!” empolga-se a estudante Isabel Vieira, traduzindo a sensação geral causada pelo grupo. Contando com o baiano Marivaldo dos Santos no elenco, o Stomp impressiona pela capacidade de utilizar objetos triviais para produzir som. E de qualidade.
A segunda noite do Panorama Percussivo Mundial foi aberta por um pianista. Wagner Tiso, que também é arranjador, regente e compositor, se especializou nos teclados e alcançou reconhecimento internacional. Ele se disse ao mesmo tempo surpreso e feliz pela iniciativa do Perc Pan de mostrar um som mais erudito. Contando ainda com percussão, bateria, violoncelo, oboé, contrabaixo e guitarra, Wagner apresentou de fato um som sofisticado, mas norteado por belas canções populares. O grupo espanhol Faltriqueira deu seguimento à noite e mostrou os pandeiros e danças típicas da região da Galícia ao público baiano. Maria Lopez, uma das quatro lindas vozes femininas do grupo, a certa altura do show disse: “A Galícia é bem perto de Portugal, por isso somos tão ligados. Esse é o país mais musical do mundo, o Brasil!”. Delicadeza, simplicidade e beleza servem para descrever a apresentação das espanholas, que se despediram cantando ‘Mas que nada’, do brasileiríssimo Jorge Ben Jor. O público, é claro, adorou.
Percussionista veterano e pesquisador dos instrumentos de percussão, o baiano Orlando Costa foi a penúltima atração do Perc Pan 2008. Para o músico, que já fez turnê pelo mundo e acompanhou figuras importantes como Caetano Veloso, Marisa Monte e Carlinhos Brown, o Panorama não é novidade. “Participei de várias edições. Eu cresci junto com o Perc Pan.” Mas essa edição teve sabor especial, porque pela primeira vez Orlando trouxe para o evento um show próprio, baseado no seu CD, ‘Eu… Porque sou percussivo’. Em cena, berimbau, guitarra, contrabaixo, muitos elementos de percussão e uma performance vigorosa de Orlando Costa, que passeava com rara desenvoltura entre os vários instrumentos percussivos presentes no palco.
Já passava das 23 horas quando os cubanos do Sintesis deram início ao seu show. Ao contrário da noite anterior, desta vez o público começou a ir embora mais cedo e no final do evento boa parte das cadeiras já estavam vazias. O fato é que as pessoas demonstraram sinais de cansaço. Não pelas apresentações, mas pela própria duração da noite percussiva - mais de 4 horas. Mesmo assim, os cubanos não desanimaram e mostraram seu estilo peculiar, que mistura o som tradicional da ilha com jazz e rock. Criado há mais de duas décadas, o grupo Sinteses é um dos símbolos da música cubana contemporânea.
Talvez o Perc Pan tenha crescido a ponto de duas noites se tornarem insuficientes para apresentar tantos trabalhos de qualidade. Na opinião de muitos espectadores, o Panorama deveria se estender, durar uma semana inteira, ocupando inclusive outros espaços além do Teatro Castro Alves. Ainda que o tempo tenha sido limitado, o 15º Perc Pan reuniu grandes expoentes e trouxe para o público baiano o melhor do som percussivo. Em 2008, como de costume, o saldo foi bastante positivo. E que venham as próximas edições.